30 abril 2005

Fera Ferida

Pensou pela décima vez no assunto:

Ele disse que não é infeliz.

Meu Deus! Ele falou! Ele falou algo sobre si mesmo, algo diferente de crítica, ironia ou sarcasmo.

Bem, na verdade, tinha que admitir, foi sarcástico e irônico o tempo todo. Até quando disse não ser infeliz.

-Não sou infeliz.

Ora. Não ser infeliz significava ser feliz?

Essas foram as palavras. Não sou infeliz. E elas estavam lá, martelando sua cabeça.

Não sou infeliz, não sou infeliz, não sou infeliz.

Mas não é isso que ele mostra no dia a dia. Conseguira fazer com que falasse, mas será que valera a pena? Agora estava lá, dormindo feito um bebê gordo, e ela ali, pensando nas poucas palavras ditas no meio de um jantar longo, de um casamento indigesto.

Mas se ele dissesse: “Sou feliz" certamente ela não acreditaria. Definitivamente, ele não tinha o menor jeito de pessoa feliz. Que pena, que pena.

Essa era ela - fazia a festa, soltava o rojão e saia correndo atrás da vareta. Ela mesma perguntava, ela mesma respondia.

Perguntava de novo, e se não respondiam, deduzia. Quase sempre erradamente. Nem todos podem deduzir. Só os muito inteligentes, os super dotados, fazem deduções coerentes, e mesmo assim, passíveis de erros.

E logo ela, uma mulher mediana, deduzindo? Mas como fazer com uma pessoa que não fala, a não ser deduzir, tentar entender, comportar-se da maneira mais adequada? Reagir contra ou a favor do que? Da imaginação?

Embora parecesse extrovertida, falante, de bem com a vida, ela queria mesmo era lhe dizer:

- Pois eu não sou feliz. Eu não estou feliz!

Está me entendendo? Não sou!

Mataria a cobra e mostraria o pau. Diria porque não era feliz. O que lhe faltava , o que queria, o que pensava, o que sentia. Diria sem esquecer de contar o que tinha, o que a alegrava e o lhe fazia bem, pois nada é mais desagradável do que ter só críticas a fazer. E isso não existe. Ninguém é de todo mau. Ninguém é absolutamente bom. Mas para isso há o companheirismo, a conversa, o olho no olho. Para isso fomos dotados de inteligência, sentimentos, vida, argumentos, sonhos, palavras, gestos, senso e, às vezes, sabedoria, pra tirar o time de campo.

Não somos ETs, não adivinhamos pensamentos. Quer dizer... não as pessoas comuns.

Ela adivinhava. Ou acreditava adivinhar. E fazia tudo da maneira que pensava ser a certa para fazê-lo feliz. Ou menos infeliz.

E ele ainda vinha dizer que não é infeliz, com cara de "sinhá mariquinha, cadê o frade"?

Ora, ora, ora... essa era a maior crise da vida deles. Ela estava infeliz.

E ele ainda repetia:

-Não vou mudar!

Pois ela gostaria de ter coragem de responder:

-Nosso caso não tem solução. Sou fera ferida, no corpo, na alma e no coração

(Mariazinha Cremasco)

1 Comments:

At 3/11/05 15:19, Blogger Roberto Iza Valdés said...

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